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A bola negou Pelé três vezes

No dia 3 de junho de 1970, o Brasil estreava contra a Tchecoslováquia na Copa do México. A goleada de 4 a 1 se transformou numa nota de rodapé a um gol que não aconteceu: percebendo Ivo Viktor adiantado, Pelé chutou forte do meio de campo, por cobertura. A bola percorreu cinquenta metros, fez uma indesculpável curva e tirou tinta da trave, enquanto o goleiro trombava nela. Nelson Rodrigues escreveu: “Foi um cínico e deslavado milagre não ter se consumado esse gol tão merecido”.

No dia 7 de junho de 1970, Jairzinho faria o único gol da vitória brasileira sobre a Inglaterra. Mas o único gol feito é menos lembrado que um gol único que não foi feito: Pelé recebe cruzamento do próprio Jairzinho, salta com potência, faz o movimento exato e cabeceia para baixo, no canto. A bola bate no chão, sobe e é interceptada por Gordon Banks, que nunca soube explicar como pôde reverter um destino tão certo.

No dia 17 de junho de 1970, Tostão aciona Pelé, que se depara com o uruguaio Ladislao Mazurkiewicz. Qualquer um tocaria de qualquer jeito possível. Pelé resolve que o melhor a fazer é não fazer, o melhor toque é não tocar. A bola, sem compreender o raciocínio, passa entre os dois. O goleiro, como um budista que finalmente tivesse atingido a iluminação, se vê diante do absoluto nada. Pelé faz a volta, reencontra o objeto de desejo, explica a ela o acontecido e chuta sem ângulo. Pra fora.

Ao contrário de muitos, acho justo que se comparem os grandes do presente com os grandes do passado. Vivemos o nosso tempo, adoramos os nossos ídolos, contamos os nossos contos. Alguns jogadores se aproximam dos números de Pelé. Alguns, quem sabe?, ultrapassarão. Recordes são batidos. Distâncias são reduzidas. Invenções são aperfeiçoadas.

Mas Pelé representa mais que a soma das qualidades que determinaram o que é ou deveria ser a excelência esportiva antes e depois dele. Rei nascido plebeu, negro coroado na Suécia aos 17 anos, lenda sussurrada com devoção por velhos e crianças nas aldeias e nas capitais, ele inventou seus precursores e estabeleceu uma meta a seus sucessores. Diluiu fronteiras, parou guerras, converteu céticos.

Os três gols que Pelé não fez são mais importantes para a história – e para a estética – do futebol que a maioria dos gols feitos por outros craques. Ele os perdeu quase de propósito. Como se dissesse: “Perversa a raça que precisa de sinais!” Cansado de fazer milagres, enfim silenciou. Ainda durante a vida, Pelé virou adjetivo, métrica, escala, superlativo, mito fundador. Agora, virou eternidade.

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