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Analgesia democrática

Ivan Lessa escreveu: “De quinze em quinze anos, o Brasil esquece o que aconteceu nos últimos quinze anos”. Bons tempos. Morto em 2012, o cronista não viveu para ver que de quinze em quinze dias nos esquecemos dos quinze dias anteriores.

A frustrada tentativa de golpe já se transformou em piada para alguns comentaristas, que pregam realismo político quando na verdade praticam realismo fantástico. Profetas do acontecido, garantem que nunca houve risco nenhum.

Evocam as condições para o golpe de 64, quando havia apoio popular e da imprensa, para contrapor ao frustrado golpe de 23, quando a população se dividiu e a imprensa que presta não se prestou ao papelão. Miram na história mas acertam no anacronismo.

Não se podem comparar circunstâncias incomparáveis, e a semelhança dos fins não depende da similitude dos meios. O que aconteceu de um jeito pode acontecer de outro. Os embates de hoje não são repetições exatas dos embates de ontem.

Por exemplo: se é verdade que a imprensa nunca apoiou o golpe bolsonarista, também é verdade que a imprensa é muito menos relevante hoje que em 64, e os milhões de pessoas que se comunicam pelas redes e mídias sociais superam os leitores de jornais de então.

Além disso, a literatura sobre a corrosão democrática ensina que um golpe se faz de muitas maneiras. O que aconteceu em Brasília foi uma tentativa clara, organizada, premeditada, financiada de gerar uma oportunidade, uma faísca, talvez uma morte.

O artigo 142 estava sublinhado e decorado para o uso. A intenção era que os manifestantes provocassem tamanho estresse social que os policiais e o alto comando das Forças Armadas se vissem “obrigados” – ou presenteados – a intervir como “poder moderador”.

O mais provável é que, na hora agá, oficiais menos afoitos e policiais menos rebeldes tenham decidido que não colocariam a vida e a carreira em risco numa aventura repudiada no mundo todo, em nome de um líder que já se escafedeu.

Mas ninguém pode garantir – muito menos fingir superioridade crítica – que a invasão de Brasília foi um acontecimentinho sem importância. Em lugar nenhum do mundo o incidente seria tratado como anedota. Nos EUA não foi.

O autoritarismo conta com a nossa preguiça ou desatenção. No afã de pregar regularidade, minimizamos os riscos e tratamos uma tentativa de golpe como um golpe de brincadeira.

Semana passada, debatíamos as escolhas ministeriais, a política econômica de Haddad, as declarações equivocadas sobre o déficit da previdência. Cheguei a ficar entediado. Hoje voltamos a falar do que sequer poderia ser cogitado.

Impedir a normalidade é uma estratégia dos grupos autoritários. O brasileiro, além de desmemoriado, sofre de analgesia democrática. Acostumado aos ferimentos, já não sente dores e se arrisca mais que deveria. Eu prefiro me preocupar. Antes prevenir que pedir diretas já.

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