em Cruzeiro, Economia, futebol, Ronaldo, sociedade

Clube-empresa, futebol-mercadoria?

Dezesseis anos e 976 jogos depois, o goleiro Fábio se despede do Cruzeiro. Tempo de contrato e desacordo sobre débitos do clube anteciparam o encerramento de uma trajetória irrepreensível. Grande como o Cruzeiro do Sul. Uma pena.

Uma pena pela maneira como tudo foi feito. Fábio garante que aceitou as adequações salariais. Ele queria mais 1 ano de contrato para se aposentar no clube aonde chegou em 2005, e de onde nunca mais saiu. Queria bater a marca de 1000 jogos e ajudar o time no acesso.

Ronaldo não quis. Paulo André não quis. A empresa Cruzeiro não quis que o clube Cruzeiro quisesse.

Longe de mim qualquer saudade de um fantasmagórico “futebol raiz”, expressão que muitas vezes serve para edulcorar um futebol desorganizado, violento e ruim. A grama do passado sempre nos parecerá mais verde que a grama do presente.

Compreendo e torço para que a compra do Cruzeiro – e provavelmente do Botafogo – represente um tranco administrativo no futebol brasileiro, de costume mal gerido e bem desorganizado. O Cruzeiro foi saqueado como poucos clubes de sua dimensão foram. Tornou-se inviável e alguma coisa teria de ser feita. Mas faço algumas ressalvas.

Não existem soluções prontas e, principalmente, não existem soluções descontextualizadas. No futebol, na economia, na segurança pública ou na educação, culturas nacionais diferentes pedem adaptações e, se preciso for, soluções técnicas diferentes.

Na Europa, em quase todos os grandes centros, a ideia de que agremiações esportivas tenham donos é mais aceita – e já socialmente compreendida – que no Brasil. A novidade da “privatização” chega agora ao país (que já foi) do futebol.

Chegando aqui, como portugueses que novamente chegassem à Bahia, os empresários deveriam entender a nossa língua. E não, não estou falando a língua da desorganização, da corrupção, das decisões irracionais. Falo de paixão e pertencimento. Falo de memória e respeito.

Que Ronaldo e seus diretores cortem na carne para viabilizar o Cruzeiro, entende-se. Mas é preciso cortar nas partes certas da carne: corta-se no braço, na perna, no tronco, não nãos órgãos vitais. Não no Fábio.

Fábio era o coração do Cruzeiro. Um jogador que ainda entrega qualidade técnica, disposição física e, mais importante, identificação. Constância. Fidelidade.

Futebol não é feito só de custos e lucros, mas de sensações, afetos, paixões. Futebol não é só feito de tostões, mas de Tostão.

A lógica empresarial tem sim de invadir os espaços do futebol, mas não deve, ou não deveria, invadir o espaço intangível da idolatria. Afinal, o dinheiro que flui no ecossistema esportivo tem origem no amor que um torcedor sente pelo seu clube, na admiração que um menino sente pelo seu craque.

Se, de repente, não mais que de repente, todos nós, idiotas que compram camisas e brindes, enfrentam chuvas e viagens, choram de alegria e dor, abrandássemos o fanatismo, desistíssemos de cantar, desistíssemos de rir, desistíssemos de berrar, o Cruzeiro acabaria.

O Cruzeiro acabaria. O Atlético acabaria. O Flamengo, o Santos, o Corinthians, o meu Palmeiras e todos os rivais, grandes e pequenos, todos os ídolos, grande e pequenos, acabariam. Acabaria o futebol-empresa. Acabaria o futebol-amador. Acabaria o futebol. Acabaria também, meu caro Ronaldo Nazário, o Ronaldo fenômeno.

O futebol precisa ser gerido com a racionalidade de quem está acordado para as contas. Mas os contadores têm de saber que ele é feito dos sonhos de quem realmente conta: os milhões e milhões de Fábios anônimos que não puderam entrar em campo 976 vezes como ele.

E nunca mais poderão.

COMPARTILHE