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Ideias têm consequências

Jair Bolsonaro está de volta à campanha, retifico, está de volta ao hospital, e seu estado inspira cuidados. Com saúde não se brinca, certo, Bolsonaro? Certo.

Mas a militância pode militar sossegada: de acordo com as últimas informações, ele não precisará de intervenção cirúrgica e continuará fazendo no Brasil o que deveria fazer na privada.

Nas mídias sociais, devotos e detratores se agitam entre boas e más intenções, sem que eu saiba quais são as boas e quais são as más: uns rezam por melhora, outros rezam para que ele passe desta para melhor.

Hélio Schwartsman promete não “protestar se um deus vingador se materializar e fizer Bolsonaro acertar as suas pendências cármicas”.

O mesmo Schwartsman que, em julho de 2020, publicou um texto controverso – “Por que torço para que Bolsonaro morra” –, quando o presidente teve de se haver com outra ocorrência médica.

Embora tenha provocado palpitações morais na audiência, a filosofia que inspira Hélio Schwartsman tem origem respeitável e não fora inventada anteontem só para atacar o mandatário.

Num resumo sumário, o consequencialismo consiste em julgar a qualidade moral de uma ação por suas consequências, e não por seu valor intrínseco.

Uma variação desse princípio é o utilitarismo de Jeremy Bentham (radical) e de John Stuart Mill (moderado): as consequências de um ato moral devem ser boas para o maior número possível de indivíduos.

É com base nessa concepção que Schwartsman constrói seu argumento. Se a morte de Jair Bolsonaro trouxesse (aposto que traria) um bem maior a um número maior de pessoas, torcer para que ele morra seria legítimo. Mais do que legítimo, correto.

Eleitores e jornalistas a soldo do bolsonarismo protestaram, mas o curioso é que a estrutura do raciocínio é compartilhada pelo próprio Bolsonaro.

Em 1999, aos 44 anos de idade, Bolsonaro defendia o fuzilamento de FHC, a ditadura militar e a morte de 30 mil inocentes. Para ele, tais consequências eram pequenas ante o bem maior previsto (que não se sabe qual seria).

Para nosso infortúnio, o deputado miúdo virou presidente miúdo e não freou nem mitigou seu ímpeto imoral. Ao contrário: ratificou muitas e muitas vezes, em público, no exercício de mandatos sucessivos, ideias ainda mais insultuosas que a defendida pelo colunista da Folha de S.Paulo.

Eleito presidente da República, tendo a chance de demonstrar maturidade ética e espírito cívico, fez justamente o contrário: comportou-se como um selvagem e foi ainda melhor na arte de ser pior.

Sua reação à crise sanitária se limitou, desde o início, a um grosseiro utilitarismo, carente de qualquer sombra de empatia, para quem os efeitos positivos da abertura econômica teriam compensado os efeitos negativos das mortes. Foi, continua sendo, a política do deixa-estar-para-ver-como-é que-fica.

Mais de uma vez ele disse, e muitos de seus apoiadores repetiram e ainda repetem, que quem tiver de morrer, que morra. Em especial os velhos e doentes.

Foi muito além do tristemente histórico “E daí”: participou de aglomerações, propagandeou tratamento ineficaz, desinformou com método, desincentivou a vacinação.

Enquanto Hélio Schwartsman torce pela morte de um homem, Jair Bolsonaro é indiferente à morte de mais de 600 mil pessoas. Mas é ainda pior.

Do ponto de vista prático, concreto, factual, o desejo do jornalista causa menos danos que a irresponsabilidade do político.

Hélio ignora ou espera pela morte de Bolsonaro, mas sua indiferença ou sua esperança são quase irrelevantes. Bolsonaro, por sua vez, poderia e deveria agir para minimizar os efeitos da pandemia, mas nada fez e continuará a não fazer. Quando pode, ele atrapalha.

Eu não sou consequencialista e por isso reprovo a posição de ambos. Os atos e sujeitos morais têm valor intrínseco. Pouco importa o sentimento íntimo de repulsa ou admiração que eu porventura tenha pelo presidente ou pelo comentarista.

Mas Bolsonaro deveria rejeitar a filosofia de Hélio pelo mesmo motivo que Hélio deveria rejeitar a filosofia de Bolsonaro. A diferença é que Hélio não coloca ninguém em risco. Bolsonaro, sim.

Para quem se interesse pela discussão, recomendo o livro Moral – Uma Introdução à Ética, de Bernard Williams, publicado no Brasil pela Martins Fontes.

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