em negacionismo, Netflix, teoria da conspiração

Melhor remediar do que prevenir

Em Don’t Look Up, Não olhe para cima (de Adam McKay), Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence) e Randall Mindy (Leonardo DiCaprio) são dois cientistas que descobrem e calculam a rota, a velocidade e o poder destrutivo de um cometa grande o suficiente para extinguir a vida na Terra.

Fazem e refazem as contas, mas elas teimam no mesmo resultado: em pouco mais de seis meses, o objeto colidirá com o planeta, a não ser que as autoridades se apressem e, com um pingo de racionalidade, façam ou tentem fazer alguma coisa de forma organizada.

Mas é próprio das autoridades, ou de algumas delas, agir sem um pingo de racionalidade. Quanto mais Mindy e Dibiasky se esforçam para explicar à presidente Orlean (Maryl Streep) e ao chefe de gabinete, Jason Orlean (Carlos Bolsonaro, minto, Jonah Hill) a gravidade da situação, menos eles a compreendem.

Ou compreendem, mas fazem outros cálculos, calculam outras rotas e estabelecem outras prioridades – como, por exemplo, aproveitar os benefícios econômicos do fim do mundo, que seriam explorados pela BASH, empresa de tecnologia não muito diferente de certas empresas de tecnologia. Peter Isherwell (Mark Rylance), CEO da BASH, é visionário, idiota e sociopata em partes iguais.

A notícia é vazada à imprensa e, em vez de provocar pânico, provoca controvérsia: haverá gente que acredita na informação, haverá gente que não acredita. Mais: haverá gente que, acreditando na informação, deixa claro ser “contra” a informação e a respectiva chegada do cometa.

O apocalipse iminente se mistura à falação das mídias sociais, ao casamento da celebridade, à pauta do jornalismo de entretenimento. Como se, no fim, tudo fosse uma questão de perspectiva. Moral da história: a exasperante impossibilidade de chegar a qualquer acordo sobre os fatos.

Li elogios, li críticas, e noto que filme é bom e é ruim pelo mesmo motivo: sua aproximação com o atual estado de coisas – por exemplo, a crise sanitária – é tão literal que chega a perder força alegórica. Caricato? A realidade é caricata. Quando George Orwell publicou 1984, ele imaginava uma possibilidade; quando Don’t Look Up é assistido, ele descreve a última atualização dos jornais.

Sim, sob certo aspecto, o filme poderá soar datado, quase como se já estivesse atrasado. Mas não, ninguém disse que uma obra ficcional precisa, para valer a pena, antecipar cenários. Fazer a crônica do experimentado, fazer a sátira do imediato, fazer a história do presente também é fazer arte, mesmo que com jeito de artesanato.

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