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O emplastro estrutural

Cheguei tarde ao julgamento que mobilizou as mais notáveis inteligências e imobilizou as mais esquecíveis burrices do país. Assim é melhor: posso divulgar minhas barbaridades sem a desleal concorrência do imediato.

Antônio Risério, escritor, poeta, antropólogo e, segundo nos autos consta, supremacista baiano, cometeu uma indiscrição imperdoável para o debate público: debateu publicamente.

A essa altura, toda a gente sabe do que se trata. Na Folha de S. Paulo, sem negar o racismo, negou que exista somente numa direção. Sem negar o racismo, negou que sua existência dependesse de um certo adjetivo – “estrutural” — que tem sido usado e abusado mais para fins que para começos de conversa.

Há racismo – que também pode ser cometido contra negros, brancos, índios, asiáticos, mongóis, baianos. Há racismo – que também se manifesta no varejo da vida privada, antes que no atacado das instituições.

É evidente que, no Brasil, o preconceito racial está entranhado na pele da cultura e nos ossos do Estado, dada a herança escravocrata, a desigualdade econômica e a geológica imobilidade social. Portanto, o que é recorrente e sistemático contra negros é eventual e aleatório contra brancos.

Mas suspeitar de uma das elaborações possíveis sobre o racismo – o que é o “racismo estrutural” senão uma das elaborações possíveis sobre o racismo? – não é suspeitar da realidade do racismo, assim como questionar a validade epistêmica de uma teoria econômica sobre a pobreza não é por em dúvida a realidade da pobreza ou a fome dos pobres.

Investigar as origens e motivações de movimentos e grupos, dentro e fora dos muros universitários, muitos deles inspirados em terminologia estrangeira, não faz de ninguém um inimigo do povo. Isso deveria ser óbvio mas não é.

Publicado o artigo, publicada a excomunhão: Risério é tudo de péssimo e mais um pouco de ruim porque ousou colocar em disputa não os fatos que, históricos, não se relativizam, mas as interpretações que, abstratas, se discutem.

Acontece que intelectuais (ou respectivos dublês) gostam do exagero – especialmente quando tem gente olhando. Houve quem invocasse, sem pudor nem rubor, o revisionismo antissemita para protestar que revisionismo algum seria aceito. No caso, o revisionismo “criminoso” do Risério. Ofensas e atribuições de crime foram distribuídas com o cuidado de quem se importa muito com o devido processo legal e com a democracia.

Nos dias seguintes, entre argumentos e exclamações, um sindicato pluralista manifestou à Folha seu desagrado porque, aparentemente, o pluralismo se tornou plural demais. Tem espaço pra todo mundo, mas nem todo mundo merece espaço. Esta opinião é opinião, aquela é crime. Esta objeção é aceitável, aquela é inaceitável. Quem decide? Os sommeliers de pluralidade, que só admitem a divergência que não diverge a sério.

Risério diverge a sério. Não é de hoje que o baiano, nascido e criado na contracultura e na cultura de esquerda, transforma em ponto de partida o que para muitos é ponto de chegada: nos ensaios de A utopia brasileira e os movimentos negros, questiona e lamenta a aclimatação dificultosa de reações, métricas e padrões raciais que não são nossos. Ironicamente, reclama do que há de colonizado em nossos movimentos sociorraciais.

Ele não perde tempo em deslegitimar a causa racial, mas se ocupa de apontar os erros de uma de suas possíveis elaborações acadêmicas. A diferença entre fato e ideia, entre história e teoria, faz diferença. Professores e jornalistas deveriam gostar de nuances. Deveriam, mas não gostam.

Mais do que racismo, a controvérsia gira em torno da apropriação do discurso sobre o racismo. Ou ainda: diz respeito à privatização teórica de qualquer discurso sobre o racismo – hoje, ontem, amanhã e depois de amanhã. Só podem falar de racismo os representantes da ideologia identitária porque têm lugar de fala. Os demais, ouçam caladinhos e ajoelhados no milho da reparação histórica.

A tese do racismo estrutural foi elevada à categoria de dogma, diante do qual não cabe dúvida, ortodoxia ante à qual não se admite capitulação. Questionar é incorrer em heresia. Não há perdão sem contrição sincera e retorno obediente à verdade.

Para encerrar a discussão que nem pôde começar, mais de um professor garantiu, de pés juntos e mãos postas, que o conceito de racismo estrutural está bem documentado na mais robusta e recente bibliografia. Acredito piamente que esteja.

Bibliografia essa que é produzida e manejada por mais de um professor que garantiu que o conceito de racismo estrutural está bem documentado na mais robusta e recente bibliografia. Ninguém discuta os livros sagrados nem duvide da palavra sacerdotal se quiser entrar no paraíso.

Eu, que prefiro entrar no inferno sozinho a entrar no paraíso acompanhado, discuto. Pretender que uma construção teórica esteja acima de qualquer avaliação, a não ser que tal avaliação seja feita por quem a produziu ou maneja, é tudo, menos atitude científica que se louve. Nem toda revisão é revisionismo, nem toda negação é negacionismo. O temor à fraude não pode justificar o temor à crítica.

De minha parte, meu ponto de discordância à provocação de Antônio Risério consiste no seguinte: até que ponto as narrativas dos movimentos negros ou identitários sobre o racismo, ainda que aparentemente radicais e exclusivistas, são de fato um problema?

Até que ponto o conflito racial, que se dá nas ruas, não pode ser aceito e absorvido nos departamentos, sem que isso gere qualquer tipo de ruptura mais grave que a proveitosa controvérsia?

O trabalho de Antônio Risério pode e deve ser discutido com todos os rigores da academia. Mas os rigores da academia podem e devem ser discutidos com todas as prevenções da boa-fé.

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