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O pão que o Estado amassou

Em São Paulo, dois policiais militares abordam três “suspeitos”: um branco, dois negros, todos pobres e desarmados, pedem desculpas não se sabe bem de quê. Breve conversa, são liberados.

O primeiro sai. O segundo sai. O terceiro sairia.

Antes de sair, recebe de volta seus documentos e, com os documentos, um fortíssimo tapa. Apenas porque sim. Como se estivesse satisfeito com mais um ato de heroísmo, o policial o dispensa.

Mas, de repente, muda de ideia. Não está satisfeito. Seu sadis… minto, seu heroísmo precisa de mais. Assim que o homem se abaixa para pegar sua bicicleta, o policial desfere um chute violento em sua cabeça.

A vítima cai, desmaiada, enquanto os valentes homens-da-lei entram na viatura. Cumpriram seu dever.

Cenas assim se repetem todos os dias, em todos os municípios e estados do país.

Não, não se trata de um “caso isolado”. Ao contrário: a violência policial é o pão que o Estado amassa todos os dias, e é comido pelos pobres-diabos que não tiveram muita sorte na loteria genética ou social.

O arremedo de desculpa é que policiais ganham mal, trabalham em condições ruins, enfrentam situações piores. A precária sociologia é que, do outro lado – esse vasto outro lado chamado “Brasil” – há criminosos cruéis, traficantes violentos, psicopatas depravados. E de fato há.

Mas um Estado que se pretenda democrático e liberal é um Estado que aplica a todos – mesmo quando criminosos, traficantes e psicopatas – a lei que os próprios não aplicam a ninguém.  

A justiça – o bom direito – é justamente a medida da diferença entre “eles” e “nós”. Faço a concessão do “eles” e “nós” para fins meramente retóricos.

Porque, na verdade, não é fácil distinguir “eles” de “nós”, se por “nós” entendermos agentes do Estado tão cruéis quanto criminosos, tão violentos quanto traficantes, tão depravados quanto psicopatas. Se por nós entendermos cidadãos que justifiquem o fascismo sob pretexto de que esta é a vida como ela é.

A quantidade de casos em que a violência policial é desproporcional à violência dos suspeitos supera o argumento da excepcionalidade. Que a vida seja assim não segue que deva ser assim. Fatos não fazem valores.

O mais espantoso – ou, a depender do analfabetismo político corrente, o menos espantoso… – é que os maiores entusiastas da “tese” de que bandido bom é bandido agredido, torturado ou morto, são os mesmos que advogam uma versão qualquer de Estado mínimo, impostos baixos, escolas livres, armas à disposição.

Muitos de nossos liberais e conservadores, ignorantes no todo e na parte, obtusos no contexto e no detalhe, são os primeiros a clamar por um Estado que seja máximo – maximamente violento, maximamente usurpador de direitos e liberdades individuais –, contanto que a violência e a usurpação sejam direcionadas aos outros. Aos bandidos. Aos suspeitos. A “nós”.

Que Jair Bolsonaro tenha sido eleito é sintoma, não causa. Muitos milhões de eleitores, finalmente, estão bem representados.

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